A maioria de nós está presa a uma vida sintética na grande cidade. Vivendo em caixas de concreto, executando funções em troca de salário e comendo comida de plástico. Não venho criticar a vida na grande cidade, mas venho alertar que esta rotina mecânica possui o estranho efeito de anestesiar nossos sentidos. Na medida em que vamos vivendo no piloto automático deixamos de sentir pequenas coisas que antes faziam tanto sentido.
Se eu tivesse que dar um conselho nesta crônica, diria: saia do piloto automático de vez em quando. A rotina urbana para quem não ousa sentir coisas novas tem o mesmo efeito de uma anestesia daquelas que o dentista aplica em nossa gengiva, deixando-nos totalmente incapacitados de sentir os sabores da vida. Imagine ir a um restaurante com comidas gostosas e sua boca toda anestesiada, é isto que estamos fazendo quando não nos obrigamos a sair da zona de conforto de vez em quando.
Isso ficou bem claro para mim quando conheci a Chapada dos Veadeiros nestas férias. Na visão da maioria que gosta de viver anestesiado pelo conforto, esse seria um programa de índio: acampar em época de chuva. Confesso que no começo achei um pouco ruim ter me submetido aquela situação, mas aos poucos a energia do lugar fez o efeito da anestesia urbana passar e eu comecei a sentir coisas novas. Eu estava no meio de um paraíso perdido no centro oeste do país. A água era límpida, o ar que chegava aos meus pulmões era puro e o som era apenas o da natureza. O som da água escorrendo nas pedras, dos pássaros cantando, dos ventos soprando os ouvidos, das chuvas pingando na vegetação.
Por falar em chuva, pegamos de todo tipo, como diria Forest Gump. Na trilha para chegar à cachoeira do Segredo, a mais difícil e extraordinária de todas, pegamos uma chuvinha miúda, uma chuvona pesada, chuvas de gotas grossas, de gotas finas, chuva que vinha de todos os lados... Molhamos até a alma e estávamos lá para isso. Ao total foram 16 km de trilha na ida e volta, atravessamos 9 vezes as curvas do rio na ida e 9 na volta. Quase fomos arrastados pela forte correnteza que as chuvas nos proporcionaram.
Senti a adrenalina acelerando meu coração quando atravessei o rio a nado. A roupa molhada pesa quatro vezes mais no corpo, enquanto andava pela trilha, sentia as meias encharcadas nos meus pés soluçar dentro do tênis. A adrenalina percorrendo seu corpo é algo realmente incrível, me sentia capaz de atravessar quantos rios daqueles fossem necessários.
Em época de seca deve ser 10 vezes mais fácil chegar à cachoeira do Segredo, mas eu gosto é do difícil, tem um sabor melhor quando se vira um jogo no modo hard. Escalamos muitas pedras escorregadias até finalmente chegarmos ao alto de um abismo. A neblina serrava o horizonte em uma imensidão sem fim, meus músculos já davam sinais de cansaço, meus lábios estavam frígidos e o cabelo todo despenteado pela chuva. No alto do abismo abri um saquinho de amendoim japonês, enchi a mão e joguei na boca. O sabor era diferente, triturava o amendoim entre os dentes, dava para ouvir internamente o barulho crocante deste sendo esmado na boca. Enquanto comia meu amendoim salgadinho sob a friagem, observei lacônico os morros ao horizonte. Aquele abismo é altamente sedutor, ele te atrai para o fundo. Quem tem tendência a suicídio não recomendo conhecer esse lugar, há casos registrados de pessoas que pularam lá de cima em um vôo mortal. Mas o amendoim, este sim deu a energia necessária para retornar ao acampamento.
Ficamos acampados no povoado de São Jorge, uma cidadezinha aconchegante, repleta de pousadas e áreas de camping. No final do dia um banho quente no acampamento, roupas secas e o cheiro da comida pronta me puxando pelo ar. Arroz, feijão, carne, ovos mexidos, salada, devorava com voracidade um prato cheio de comida. Não era a comida da minha avó, mas a fome a deixava tão gostosa quanto.
Quando a noite caía, um manto mágico repousava sobre o pequeno povoado. As luzes das pousadas e campings se acendiam, pequenas festas com drinks deliciosos animavam a noite. Música ao vivo, era hora de relaxar curtindo um luau aquecido pelo calor da fogueira.
Pela manhã olhei desconfiado para o meu tênis. Depois de passar o ano todo calçado ousei sentir meus pés andando descalços sobre a terra molhada. A terra é macia e fria, mas algumas vezes pedrinhas beliscam seus pés. Acho que o segredo está justamente aí: ousar viver todas as emoções que fazem parte da vida.
Não jogue apenas pelo seguro, saia da zona de conforto. Faça algo assustador de vez em quando, como esportes radicais ou entrar em uma trilha altamente perigosa em temporada de chuva. Tenta ir ao sentido contrário das pessoas na entrada do elevador, tenta roubar um chocolate no supermercado, tenta entrar de penetra em uma festa, marcar um encontro com alguém desconhecido na internet, amar do fundo do seu coração uma mulher com mais idade que você. Tenta ousar mais. Tenta jogar com novos sentimentos. Isto deve te fazer sentir um ímpeto de energia.
Existe muito potencial por trás do improvável, sendo assim, se você viver sempre dentro da zona de conforto não vai conseguir viver ao máximo, irá perder muita coisa. A vida é como um carro de alta cilindrada, se você dirigir sempre dentro da velocidade permitida ela perde a graça, torna-se chata. Então aproveita que você ainda está na estrada para fazer pequenas coisas extraordinárias.